Presa por um fio

 

Gostava muito de vos dizer que a vida é bela, em tons rosa e cheia de arco-íris cintilantes.

A sério que gostava. Mas os últimos dias têm-se pintado de cinza escuro e a esperança parece estar falecida num canto da sala.

 



 

A maioria das mulheres concordará comigo se eu disser que ser mulher é difícil. Apenas SER mulher. Com marido ou sem marido, com filhos ou sem filhos, com trabalho ou sem ele.

Qualquer mulher que queira O melhor, que queira SER melhor, é confrontada com um conjunto de exigências: a alimentação que deve ser saudável, o exercício físico para ter mais saúde, o tempo que se deve encontrar para o “eu”… e estou a referir-me às coisas básicas para que alguém esteja de bem consigo.

Não incluo aqui as 527 mil coisas que uma mulher se sente compulsada a fazer pela influência (consciente ou não) do que a sociedade nos impõe. Não me estou a referir àquela parte de sermos mulheres impecavelmente maquilhadas, com roupa apresentável, chef de haute cuisine, mulher sedutora, mãe exemplar, trabalhadora exímia. Podia elencar muitas mais, mas tenho a certeza que gostariam de ler este post no decorrer deste ano.  E por isso já estou a tirar todas estas facetas da equação.

Procurámos imitar as realidades perfeitas que nos chegam pelas redes sociais e a única rede que alcançamos é uma espécie de amarras invisíveis. Amarras essas que podem tornar-se uma tortura maior que estar presa a umas algemas (vá…não se ponham a voar para o cenário das 50 sombras de Grey, por favor, isto é sério).

Mesmo assim, parece-me uma tarefa utópica conciliar tudo, mesmo que esse TUDO seja o MÍNIMO. Sinto-me como uma marioneta cujos fios puxam para lados distintos à procura de satisfazer todas estas exigências. E ser mulher em confinamento é ainda mais difícil. Afinal…há pouca coisa a fazer:

Começar o dia com um chá para pôr o intestino a funcionar, esfregar o produto de tratamento no cabelo (este assunto será aprofundado num outro post), dar o pequeno-almoço à criançada, atender os mil telefonemas de trabalho, estar apresentável para a reunião por zoom, pôr as crianças em frente ao computador para mais uma aula online, comer de 3 em 3 horas  e beber 2 litros de água para não ficar uma bola, interromper a reunião para ir ao wc (a água do início da manhã começa a fazer efeito), voltar a pegar no assunto que ficou a meio, interromper para tratar do almoço, ir ao wc, tirar o computador da mesa da cozinha enquanto mando mais um email, justificar porque razão o almoço hoje foi douradinhos e não o arroz de pato que estava ao lume (queimou-se nestes entretantos), pensar numa refeição equilibrada para o jantar, arrumar a cozinha, ir ao wc ,voltar ao teletrabalho, interromper para esclarecer uma dúvida dos TPC de um dos filhos, convencer (palavra simpática para obrigar) o outro filho a fazer a tarefa de português, voltar ao assunto que ficou a meio, tirar a carne do congelador que me esqueci de tirar quando pensei na refeição saudável sem carne, atender mais uns telefonemas, parar para dar o lanche às crianças, gravar a tarefa que o filho mais velho tem de enviar para educação física, dar mais um lanche, voltar ao assunto que ficou interrompido e que desconfio muito só vai ser resolvido tarde e a más horas, devolver as chamadas que não atendi enquanto estava a dar lanches, pôr lembrete para ligar aos pais para saberem se estão bem de saúde, ser árbitro de uma luta livre entre irmãos, ir ao wc, respirar fundo para não me enervar com o estado da sala que mais parece um cenário de guerra, adiantar o jantar, pôr lembrete no telemóvel para dar uma caminhada, atender mais uma chamada, ir ao wc, pôr o jantar a  fazer, praguejar porque já não são horas de ir caminhar, dar banho aos putos, salvar o jantar de mais uma esturricadela, mandar mais um email, ir ao wc, jantar, pensar 30 vezes antes de decidir que não é hoje que vou caminhar, ler uma história à pequenada, pôr o produto de tratamento do cabelo, ir ao wc, (tenho de repensar esta coisa de beber 2 litros de água por dia), adormecer antes da miudagem, acordar à 1h da manhã porque me esqueci de tirar o almoço do congelador e não liguei aos meus pais, demorar 2h a adormecer, desligar o despertador porque parece que adormeci há 5 m…. começar o dia com um chá…..

É claro que o resultado de tudo isto só pode ser desastroso: uma marioneta com os fios emaranhados tal como um novelo de lã, sem capacidade de dar um passo que seja.

É assim que me sinto hoje. A ser puxada por todos os fios da vida e sem conseguir articular-me de forma a ficar de pé. Cortar os fios seria uma boa solução, não significasse isso ficar desprendida de tudo e de todos, sem movimento. Não me refiro a ficar literalmente sem movimento. Porque a parte filosófica desta questão é que são esses fios que nos mantêm em pé, vivos. Mas esses fios que nos erguem são os mesmos fios que nos fazem deambular perdidos de um lado para o outro. Qual banda filarmónica cheia de instrumentos e cada um a tocar para seu lado.

O segredo será separar fio por fio e pôr a marioneta a funcionar de forma harmoniosa. Pôr os instrumentos a tocar a nota certa, no tempo certo. Certamente que os maiores pensadores diriam que é esse o desafio da vida; que é esse o segredo de saber viver.

Ora bolas…uma coisa tão simples e eu que nasci sem dotes para a costura, nem a varinha de maestrina (a minha varinha por vezes parece mais de fada, mas com outra vogal).

Agora que estamos em confinamento tudo parece ser mais difícil e finalmente percebi a razão. Deixei de ter “mão” nas “mãos” que mexem os fios por mim. Supostamente devia ser eu a mandar. Queria tanto ser dona dos meus movimentos e nem percebi que essa é que era a parte difícil! Antes do confinamento, era a “mão do trabalho” que mandava nos dias úteis. Ao fim de semana a “mão” da família conduzia a marioneta. Agora há um MÃOnancial (gostaram do trocadilho??) de fios e de direções e não há quem “ponha mão” nisto (ahahaha que eu estou tão inspirada! Um mão cheia de piadas aahahhah).

A verdade é que as fotos que nos impingem diariamente dá-nos uma falsa sensação de erro. Parece que estamos a fazer tudo mal. Que devíamos ter feito um bolo para tomar o pequeno-almoço em família, que devíamos ter aproveitado o intervalo entre o #estudoemcasa e a aula sícrona para tomar um belo café quente na sala híper mega bem decorada (e arrumada!),que devíamos ter tirado uma selfie a fazer os 30 m de ginástica mostrando os glúteos apetitosos sob o olhar apaixonado do marido, que devíamos ter feito aquela refeição light-deliciosa-com-ar-de-revista-chique, que devíamos estar super divertidos em mais um jogo em família, que devíamos…que devíamos… que devíamos.

O meu telemóvel tem um problema técnico qualquer que só me permite tirar fotos a trabalhos de casa para mandar por mail à professora ou à lista de refeições que organizei durante o fim de semana e vou aldrabar ao longo da semana.

E eu queria gritar bem alto que não devíamos ter de fazer nada daquelas coisas que disse antes. Que não tenho tempo para pôr corretor nas olheiras que vão até ao umbigo. Que estou a fazer o melhor que sei e que posso para manter tudo a funcionar. Que apesar de não dizer tantas vezes como gostaria, eu  adoro a minha família (que me põe os cabelinhos em pé e me consome a alminha), todos os dias! Que aspiro ser alguém melhor mas provavelmente esta é a melhor versão de mim.

Queria dizer que sou uma sortuda porque tenho família, casa, emprego e gritar por todas as mulheres (demasiadas!) que acham que estão a errar porque não contribuem para o feed do instagram com as fotos de uma vida pseudo perfeita.

Queria mostrar que não há nada de errado com a normalidade, que a falha faz parte da vida, que não queremos mais “fios” ou “mãos” a guiar as nossas vidas imperfeitas.

Porque há muitas mulheres que estão por um fio com tamanha pressão. E não me venham com a história que só as fracas de espírito se deixarão tomar pela pressão. Se a fasquia for colocada na estratosfera e acharmos que isso é o normal, muitas nem terão tempo para se questionar, enquanto tentam alcançar o tecto.

No final do dia, o mais importante é mantermos o equilíbrio e alguma (ainda que pouca) sanidade mental. 

Isto é, não perdermos o fio à meada.

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