Clausura


Confinamento = Estado ou condição do que está em lugar fechado ou impossibilitado de sair. O mesmo que Clausura, Isolamento, Retiro
 

 

Menos de um ano passou desde que confinámos pela 1ª vez.

16 de março de 2020.

Não tenho como esquecer a data. A minha criança do meio fez anos, sem direito a festa, nem bolo. Apenas um jantar improvisado a achar que tudo estava bem. Não sabíamos, mas fizemos a festa com uma sombra a pairar sobre nós. Com um turbilhão de sentimentos a batalhar dentro da alma: fechados em segurança enquanto o Corona Virus se espalhava nas televisões e semeava o medo pelas ruas. Queríamos muito regressar rapidamente à nossa rotina, esperando que tudo não passasse de um pesadelo.

Mal nós sabíamos que passado 10 meses voltaríamos a estar encerrados em casa. Protegidos? Sim, sem dúvida. Com condições que muitos almejam ter: uma casa, um lar, um sítio seguro. Frigorífico cheio, conforto, fechados mas com acesso ao mundo (internet, telemóveis, computadores e afins). Com saúde? Sim, sem vírus, sem maleitas do corpo. Mas a alma…ai a alma! Atormentada por viver tempos inimagináveis.

Fevereiro iniciou-se chuvoso. Quase como que a dizer que também o céu tem direito a chorar. Porque cá em casa o choro é coisa que não falta. As emoções andam à flor da pele e a casa (que é grande) parece ter encolhido no dia em que nos fechámos.

A mesa da cozinha tem sido objeto de mais renovações que o número de episódios do “Querido mudei a casa”. Ora é mesa de trabalho, ora carteira de escola, ora mesa (muro) de lamentações.  E a confusão está instalada: um lápis que mora ao lado de um prato, um desenho que por engano serviu de guardanapo, um computador a carregar na tomada que antes servia a máquina de café.

As 24 horas do dia que não chegam para todas as tarefas, são as mesmas 24 horas que se prolongam por demasiado tempo e se assemelham a um mês. Curioso como em clausura o tempo é algo tão volátil!

Tinha 17 anos quando uma tia me convidou a juntar-se à sua vocação. Dizia-me que fazia falta uma freira com traquejo informático e conhecimentos de piano. Afinal havia mais do que um teclado disponível para mim: o do escritório da Congregação e o do órgão da capela privada da casa. Numas férias de verão, acedi ao seu pedido e entrei em “retiro” durante um mês. De manhã, organizava os papéis da Irmandade e de tarde, em vez do chá, tocava órgão na missa das cinco. Vivia-se num mundo à parte, tal e qual como agora. As instalações eram novas, a comida era divinal (a cozinheira era uma freira italiana), havia sempre que fazer. Mas o meu coração já tinha sido entregue a outro que não Jesus Cristo e por isso vivia com os espinhos das saudades e da distância daquele que mais tarde viria a ser o meu marido.

Sei que a minha presença era um conforto para a minha tia. Partilhávamos o mesmo sangue e o mesmo espaço. Coisa que lhe era tão rara.

A clausura dos dias de hoje é em parte semelhante. Fechados no conforto do lar, mas sem a cozinheira italiana que tanto jeito nos teria dado! Fechados com rotinas instaladas, rotinas que não são bem aquilo que desejávamos, mas que temos de cumprir. E eu, continuo agarrada a um teclado - que não é o do piano - e sem o chá (e a missa) das cinco. Tenho sim o chá, o iogurte, o pão, os cereais e todos os outros lanches que os meus “sacos-rotos” me pedem de cinco em cinco minutos.

Uma clausura que é vivida num amor a dois, ou melhor, a cinco (filhos incluídos), com a supervisão da minha tia, que certamente nos acompanha do alto de uma nuvem branca.

Continuaremos fechados por um mês ou dois ou três… a espreitar pelas grades do portão, à espera do dia em que teremos autorização para sair.

E a menina de 17 anos que voltou a sua casa depois de umas férias diferentes, é a mulher que não mais se esquecerá do retiro interior a que este confinamento obrigou. 

À espera que o portão se possa abrir.

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